Bem vinda você, pessoa que caiu aqui de paraquedas, chegamos à décima edição dessa busconírica que me trouxe tantas novas percepções esse ano. Bonito, viu. Agradeço a você que da sua caixa de email entrega tempo pra conhecer os cômodos desse meu laboratório de escrita, sério, tenho nem o que dizer, só continuar ❤
Vamo começar com uma gravação que fiz em 2012 da minha vó materna contando sobre quando eu fui morar com a mãe, depois de ter passado meus anos iniciais com ela e o vô (o sotaquinho, eu não dou contaa 😭❤ minha vó é uma mistura de Vovó Juju do irmão do jorel, e Muriel do coragem o cão covarde):
De tempos em tempos penso sobre a caixa de grampos que a vó usou em seu casamento, há mais de 70 anos, grampos que não existem mais, só a caixa. Dentro dela alguns papéis, com símbolos que parecem código morse, “são as contas das cobertas que eu fazia no tear”, a vó explica.
A caixa de grampos ainda existe fixa e imutável no baú guardado com segredo e mistério e chave. Foi pra mim que ela abriu e mostrou e contou as histórias das coisas todas. Contou seus registros de memória enquanto ainda tinha visão já bem defasada. Foi também pra mim que ela ensinou seu método de torrar café, panela de ferro e colher de pau. Na oportunidade de ver e ouvir, sinto que fui responsabilizada de carregar comigo as memórias que já estavam impressas em minhas mãos, nos traços do meu rosto, na botina que arrasto no sotaque.
Mas a memória é coisa tão frágil, editável e nem um pouco confiável. Além de tudo é impossível desassociar memória de tempo e o tempo é esse cretino sem escrúpulos que consome tudo do jeito que bem entende, sem dar satisfação pra ninguém. Mas também ousa destacar na memória as coisas que parecem ter mais importância ou pelo menos aquelas em que nos apegamos pra fazer sentido da nossa identidade.
“Levo comigo uma bagagem silenciosa. Fechei-me tão profundamente e por tanto tempo no silêncio que nunca consigo abrir-me através das palavras. Apenas me fecho de outras formas quando falo.”
(Tudo o que tenho levo comigo, 2009. Herta Muller, tradução de Carola Saavedra)
Falei na última cartinha sobre um livro, de uma Herta: é o Tudo o que tenho levo comigo, da Herta Muller. De longe um dos títulos mais lindos já traduzidos, palmas pra Carola Saavedra. Tô lendo beeem devagar e deixando rolar assim e tá massa. Dolorido, impactante, sem pontos de interrogação, lindo demaaais da conta, e de novo sofrido e terrivelmente poético.
O livro da Herta é sobre Leo Auburg, um romeno por nascimento, jovem secretamente gay de família tradicional alemã que não se sente adequado, nem dentro dos costumes e passado de sua família nem daquele país que não era bem seu. O livro circula entre a vivência de Leo no campo de trabalho forçado russo, pós segunda guerra mundial, e suas memórias da infância e juventude. Só que quem conta tudo isso pra gente é um narrador em algum “presente” tentando fazer sentido de suas memórias. Com as palavras, Leo vai tentando costurar os fragmentos daquilo que se tornou, seu relato não pretende acurácia histórica e nem ao menos linearidade. Sua dor e seu trauma não possuem começo ou fim1, ainda que volte pra “casa”. Herta ganhou o prêmio Nobel de literatura em 2009, ela escreve em alemão como forma de resistência contra o esquecimento2, mesmo quando ainda morava na Romênia.
“É possível que eu tenha esquecido mais facilmente as coisas trazidas de casa do que aquelas adquiridas no campo de trabalho. E se for, é porque eu as havia trazido comigo. Porque elas me pertenciam e eu as continuei usando até que se gastassem e até depois de gastas, como se eu não estivesse com elas em outro lugar, mas continuasse em casa. Pode ser que eu me lembre melhor dos objetos que pertenciam a outras pessoas, porque eu tinha de pedi-los emprestados.”
(Tudo o que tenho levo comigo, 2009. Herta Muller, tradução de Carola Saavedra, destaques meus)
O desconforto maior que senti nessa leitura talvez venha da humanização monstruosamente delicada dos objetos, das situações e da descrição do Anjo da Fome, presente em todos os capítulos, inclusive naquele dedicado ao cimento. Sinto também inveja desse personagem-narrador ao conseguir articular sobre detalhes de sua experiência de forma tão delicada e angustiante. Bom, como Herta articula a partir da voz de Leo.
Tenho pensado muito sobre memória e registro, nos áudios que gravo da minha vó e das conversas com amigos, as fotos, assim como a escrita. Como levamos conosco o que nos contém? Onde armazenamos memória ao nosso redor? Precisamos de objetos pra isso? Como manusear a memória também como ferramenta de resistência contra o esquecimento?
“(…) minha avó disse: EU SEI QUE VOCÊ VAI VOLTAR. Não guardei essa frase intencionalmente. Levei-a distraído para o campo de trabalho. Eu não tinha a menor ideia de que ela me acompanhava. Mas uma frase assim é algo autônomo. Ela teve efeito sobre mim, mais do que os livros que eu levara. EU SEI QUE VOCÊ VAI VOLTAR tornou-se cúmplice da pá de coração e adversário do Anjo da Fome. Como voltei, posso dizer: uma frase assim nos mantém vivos.”
(Tudo o que tenho levo comigo, 2009. Herta Muller, tradução de Carola Saavedra)
Se tirar toda a parte “ruim” das minhas memórias, como a narrativa de quem sou se sustenta? Ou ainda se eu esquecer das origens da minha família, além do racismo e homofobia tão presentes nas falas naturalizadas em encontros familiares? Tem manchas esquisitíssimas que são impossíveis de apagar, e tentar fugir disso não resolve as coisas.
As fotos e vídeos que registrei dos itens do baú se perderam em um HD que morreu, o baú não foi aberto novamente e eu carrego na memória uma das poucas cópias de registro do que se tratam aqueles tesouros, e a vó perdeu a visão. Como colocar em uma bagagem individual os traumas vividos coletivamente, como fazer caber? Como não deixar cair no esquecimento as histórias que nos formaram? E os cheiros das pessoas amadas? Como carregar o silêncio na bagagem?
“Mas a verdade é que eu não sei. Eu nunca sei. Todo dia, eu tateio um pouquinho. Todo o dia, eu me acostumo a não ter as respostas.”
(Viver as perguntas. Ariela K. - A Diletante)
A dona psicóloga fala que alguns eventos a gente tem que aprender a colocar no “arquivo-morto”, um espaço ao qual temos acesso quando precisamos de alguma informação, mas que não vai desengatilhar uma crise em caso de contato. Antes de mandar pro arquivo morto, tem que olhar praquele evento de todos os ângulos, fazer os possíveis reparos, tirar a sensibilização relacionada àquilo, alterar ou encarar a responsabilidade da ação e assim por diante.
Como a gente faz isso como país? O Brasil nunca passou por um “processo de análise” em relação às suas maiores tragédias, como a escravização de pessoas e o período da Ditadura Militar, por exemplo. E seguimos repetindo basicamente os mesmos ciclos de sofrimento.
Na repetição a gente não necessariamente aprende, mas se acostuma, se aclimata, se integra. Vez ou outra aprende também. Tenho fritado muito na ideia de que quando lembramos de algo, estamos lembrando da lembrança a partir da última vez que lembramos daquela lembrança. Sabe?! A gente vive de se repetir e a gente repete o mundo por ensaio de algum papel que a gente tá entendendo se quer viver em tempo integral e repetimos também por acreditar que não existe outra forma possível de estar no mundo.
Repetimos histórias familiares em todos os sentidos da palavra. Relativo à família; que estabelece ou com que se estabelece uma relação de intimidade; que já foi visto, ouvido ou conhecido antes. Talvez o exercício de registro possa trazer, pra além de acurácia ou até mesmo relevância histórica; reflexão, elaboração, se ver e se transmitir, mas também definir seu olhar em relação àquilo, qual efeito apareceu, como vai lidar a partir dali. E o ato de compartilhar, dependendo da plataforma e da disponibilidade de quem vê/ouve/lê/entra em contato, pode reverberar em outras elaborações. A gente sente que não tá só, sabe.
Sinto que vou voltar a falar desse livro e com certeza falarei mais da minha vó! Inclusive venho pensado em compartilhar mais áudios das histórias dela, o que você acha? Mas por enquanto é basicamente isso que tem reverberado por aqui com essa leitura.
Nesse período de fim de ano e ciclos, bate fortíssimo o efeito Simone e a gente tende a sair botando as coisas na balança. Botei inclusive meu emprego, que já não existe mais :D Foi uma decisão meio irresponsável, mas extremamente necessária. Tô feliz que já chegou projeto pra começar dezembro animadinha com boletos pagos, gatos alimentados e cabeça mais leve! Estou um pouco mais saudável, a quem interessar. Já que você me convidou pra visitar sua casa com minha palestrinha, talvez seja de bom tom vez ou outra dar notícias sobre a saúde, ainda mais depois de falar tanto de adoecimento.
Memória e narração: o vivido e o simbólico recriados através da linguagem, instrumento de resistência em tempos de exceção – Scheila Mara Batista Pereira Lopes. Revista Eletrônica Literatura e Autoritarismo – Dossiê no 9, Setembro de 2012 – ISSN 1679-849X
Herta Muller, Como utilizar o alemão como língua de resistência depois de Hitler? – Alex Castro
Vou deixar algumas indicações pra você engatar aí quando estiver vivendo o repouso ou a ressaca no recesso de fim de ano:
Ganhar ou perder todo mundo vai perder - Suellen Rubira (Perdi o bonde e a esperança):
“A poesia traduzida (pra mim) é uma das maiores provas de que a perda é o que há de mais humano. Quando leio um poema traduzido, meu corpo dói. Dói não poder saber as nuances da linguagem, a ambiguidade das palavras, dói não conseguir entender a sonoridade do poema na língua original. (…) Perder essa experiência dói. Ter acesso a uma parcela dessa experiência me conforta.”
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O Macaco de Kafka - Aline Valek (Uma Palavra):
“Óbvio que ficaram muitas lacunas no caminho. E as lacunas apavoram porque mostram o que ainda nos falta, como se fôssemos seres incompletos, como se precisássemos preenchê-las depressa. Porém entendi que faz parte do processo me acostumar a ouvir o que não entendo. As lacunas estão ali para podermos aprender a saltar.“
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Lendo o mundo como romancista - Ariela K. (A Diletante):
“Mas a grande romancista talvez seja a pessoa que está justamente um passo adiante da ideia. Ela captura a realidade que já está nas relações humanas antes que as explicações sociológicas consigam achar a lógica subjacente. A observação precede a teoria, e a elaboração de personagem é um jeito de observar.”
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Reflexões isoladas #1: como sonhar no pós-pandemia? - Virginia Valbuza (Corpo Híbrido):
“Afinal, o que nos reserva o amanhã? E o que queremos para ele? Será que seguiremos inertes ao caos mundial ou saberemos honrar a memória de todos que se foram neste período? Será que nossos esforços serão concentrados para o retorno de uma normalidade que desde sempre foi violenta, ou construiremos novas realidades onde João Pedros ou George Floyds terão o direito à vida garantido? Será que o obscurantismo nos seguirá até o fim dos tempos ou é possível sonhar com um novo mundo, onde a lógica da barbárie já não nos acompanha mais?”
Encerro essa cartinha com muita esperança de dias mais arejados e de passeios em boa companhia, inclusive a sua, a minha. Bons drinks, abraços demorados, boas notícias e lanches <3 além de salário digno, educação e saúde de qualidade, casa e acolhimento para pessoas em situação de rua, preservação do Cerrado e da Amazônia, não deixar o rim a cada compra pequena no mercado, alimentação sem veneno e com respeito. A gente pode sonhar, e fazer acontecer.
Ofereço essa que é uma das minhas músicas preferidas, na versão que mais gosto:
(mas eu volto, tá?! prometo que volto!)
Abraço apertado, boas festas e lembra que um pouco de droga mas um pouco de salada também ein, bebam água! Até ano que vem ❤
Muito amor essa edição ❤️❤️❤️❤️
num guentei, já fui logo botando o livro no kindle porque as frases me pegaram demais.
adorei essa edição, a voz da sua vó me lembra alguém querido - não consigo lembrar quem.
sobre memória, gosto de espalhar a palavra de freud no texto "recordar, repetir, elaborar".
beijo e ótima passagem!