Acordo às 5h com o barulho da chuva e os gatos batendo na porta pra me avisar que chove muito, caso eu não tenha reparado. Levanto e dou início ao dia. É sábado, a garganta ainda incomoda. O efeito de todos os medicamentos mantêm a cabeça preguiçosa. Tomo café, como uma tapioca bem recheada pra tomar os comprimidos da manhã. “Infecção aguda das vias aéreas superiores”. Com direito a benzetacil. Penso que pelo menos não é covid, e na sequência me questiono do que me vale esse “pelo menos”.
Pego o leitor de livros digitais e volto ao livro da Herta, a leitura caminha sem pressa desde o fim das férias por ser tanto, por ser dolorida, por gerar essas coisas todas em mim. Penso na vó, na minha e na do personagem e na promessa que ela fez de que ele voltaria pra casa. Pego o celular e conto pra mãe que acordei sem febre e que logo passa, vou ficar quietinha sim e descansar. Sim, tô tomando bastante água, tá bem, vou comprar coalhada pra amenizar os efeitos dos remédios.
Morar sozinha tem dessas, de ir ao hospital, tomar medicação, depois sair caminhando em direção à farmácia e depois ao mercado; fazer sopa, comer e só então dormir. Não que falte a quem pedir uma ajuda, mas quê isso, tô melhorando, é tão pertinho. Aviso as pessoas, aviso que tô me sentindo melhor, depois aviso também do resultado negativo do PCR. Aviso que dou conta, que logo fico bem, que vou me cuidar mais e comer melhor.
Repete-se o pensamento de que preciso arrumar uma pastinha com documentos importantes e deixar em um lugar de fácil acesso, vai que acontece alguma coisa. Abraço Idris que se derrama no meu colo e mia bem manhoso em tom de “sim humana, continue, isso mesmo minha serva, acaricie-me, isso, bem nas orelhas”, com os olhos fechados e a linguinha pra fora. Elba não tá pra papo, quer ficar na dela, enroladinha. Penso em como é possível amar tanto essas criaturas. Não tinha medo da morte até adotar o primeiro, da minha continuo não tendo medo, mas agora falta a pressa que existia na adolescência. Agora também tenho mais consciência do que fica e do que falta quando pessoas queridas deixam essa existência.
Tento continuar a leitura mas releio o mesmo parágrafo 5 vezes até desistir e desligar o troço. Preciso ouvir essa irritação na garganta que ocasionalmente volta, e esses ombros sempre pesados, tensos. No exercício de respiração que fizemos na oficina de escrita durante a semana, ouvi meu corpo dizer que tem coisa presa aí, escondida, coisa sedenta e sufocada. Tem peso e dor mas que já não faz mais parte. Que os calcanhares falhos esqueceram o que é pisar com fé, mas que ainda tem caminho e que já tá passado de hora.
Lembro do texto da
e de andar para trás em direção ao futuro. Penso nos Símbolos da Transformação do Jung e em como ele fala sobre a Antiguidade e os grandes mistérios humanos, que nos colocamos em posição de superioridade moral em relação ao passado. Que a identidade dos conflitos humanos está além de tempo e espaço. Folheio o livro e vejo os trechos marcados em lápis, vejo o quão pouco avancei nessa leitura e sinto saudade de me encantar com o Jung. Percebo o quão pouco sei sobre a minha própria história e sobre a história daqueles que vieram antes da vó. Percebo o quão pouco sei. Ponto.Boto a culpa no corticoide dessa súbita vontade de chorar, que fica só na vontade, entalada de novo na garganta, que agora quase não dói mas ainda guarda tanto. Talvez se tivesse tirado as amígdalas na infância, não teria essa porteira que segura sons e transbordamentos. Talvez não. Talvez seja outra coisa essa contenção, esse escondimento. O que não foi não é, não dá pra ser mais, mas é possível mudar a percepção sobre o tempo.
O não saber é oportunidade, não é isso que dizem? Que quem vive de certezas não aprende nada novo. Algo assim. Deito depois do almoço e sonho de outra vez com a moça das caixas aparecendo pra dizer que tudo é construído, feito as caixas que ela amontoa.
Quero continuar aquela história, mas preciso de mais tempo. Preciso deixar assentar, deixar que a história continue em mim.
O dia segue, assim como a perturbação mental de todo esse pessoal aqui dentro tentando combater o adoecimento, não sei se apenas o do corpo. Já é 1h da madrugada e penso que não quero mais fugir. É mais cansativo e traz menos benefícios que encarar as coisas de frente, do que pegar e fazer logo, do que dizer o que precisa ser dito. Sem rodeios ou procrastinação.
Lembro do quanto gosto do meu espaço, dos espaços todos que criei e dos que me convidaram a permanecer, dos que foram criados pra que eu ficasse. Ao deitar, ligo o gravador do celular e registro 26min sobre o quanto gosto de morar sozinha e das partes difíceis também, mas concluo que os prós superam os contras e que não quero mais fugir.
Adormeço com o pensamento de que preciso ouvir com mais atenção, a parte de dentro e a de fora. Escutar de peito aberto quem já caminhou mais que eu, e quem me vê a partir de um lugar de amor. Sinto-me bem.
que belo relato do repouso, ana!
"Lembro do quanto gosto do meu espaço, dos espaços todos que criei e dos que me convidaram a permanecer, dos que foram criados pra que eu ficasse. Ao deitar, ligo o gravador do celular e registro 26min sobre o quanto gosto de morar sozinha e das partes difíceis também, mas concluo que os prós superam os contras e que não quero mais fugir."
não gravei 26 minutos sobre o quanto é bom morar sozinha, mas várias vezes me pego pensando nisso. embora eu seja uma pessoa que gosta de se dedicar aos outros, ter a minha paz e o meu canto é uma alegria que a gente só entende quando fala... e quando sente. melhoras para ti! :))
Estava eu no meu sofá largada num sábado, quando vou lendo esse post, meio hipnotizada, até ler subitamente a menção ao texto do tempo em espiral! Quase chutei o pobre cão que deitava aqui ao lado. Muito obrigada! Principalmente pelo teu texto ❤️