Ela tem 14 anos e esse é seu primeiro dia em uma escola nova. Deslocada no recreio com sua marmita no pátio da escola, dobra um tsuru para passar o tempo depois de comer seu sanduíche. Até que um garoto senta-se ao seu lado, pergunta quem ela é e oferece lanches, e assim começa uma amizade. Eu poderia estar falando de uma memória pessoal, mas esse é o começo de Girl Asleep, filme de 2015, com direção de Rosemary Myers e roteiro de Matthew Whittet.
O filme foca em Greta, uma menina que acabou de se mudar com a família para uma cidade nova e perto de completar 15 anos, está lidando com as questões da adolescência. É uma narrativa de amadurecimento, com uma linguagem visual fantástica e referências fortíssimas a Wes Anderson. Girl Asleep é um dos meus filmes preferidos (obrigada por isso, Thami).
Existe um bosque no fundo da casa de Greta que a encara e que ela encara de volta com curiosidade e fascínio. Em sua festa de 15 anos, o bosque e as criaturas que nele vivem levam Greta em uma aventura, que envolve confrontar e acolher a criança que sempre habitará sua vida.
Revi o filme recentemente antes de uma pequena viagem que fiz à casa da minha vó, onde passei grande parte da infância, e pude revisitar o quintal que foi palco para os vários personagens e aventuras que me fizeram companhia durante os anos de formação de grande parte da pessoa que me tornei hoje.
Cresci em uma região rodeada por cerrado, rios, mato e bichos no interior de Goiás, morando com o vô e a vó até os 5 anos e depois voltando a morar lá por períodos curtos até meus 19. Uma casa sem muros, a última do seu lado da rua. A cerca de arame que delimita os fundos do grande quintal, dá para um cerradão que vira vale e sobe de novo numa serrinha e no horizonte outras chácaras, fazendas, e mato até o infinito. Um dos meus destinos preferidos nas visitas era o quintal.
Sinto falta do pé de jabuticaba ao lado da casa, que escalávamos até alcançar o telhado em época de frutas maduras. Passo por onde ficavam os pés de abacaxi e as melancias quando era pequena. A saudade maior é dos pés de café e de quando a família se reunia em mutirão para colher, limpar e colocar os grãos pra secar. E de sentir o cheiro e a fumaça da vó torrando café de manhãzinha, depois moendo e coando o melhor café. O pé de cacau quase morreu, mas não só se recuperou como já está começando a dar frutos de novo. Os pés de manga e os abacateiros seguem firmes, além dos cajueiros, limoeiros e também os pés de acerola que estão quase sempre carregados. Sobrou só uma das roseiras da vó e ela agora tem a companhia de um pé de cajazinho. Dei sorte de encontrar o jambeiro florido, todo cheiroso, iluminando memórias e sensações.
Caminhar pelo quintal da casa da minha vó me transforma. Sou transportada para um espaço interno de conforto e familiaridade. Meus sonhos mais significativos costumam pescar algum elemento desse quintal para compor a paisagem. É uma espécie de reencontro com uma Ana que acreditava em possibilidades que ignoram leis da física, uma Ana que não conhecia um mundo que mata e violenta mulheres, pessoas não-brancas e LGBTQIA+ simplesmente pelo fato de que elas estão fora da “norma”. Um mundo que dizima comunidades originárias e as pessoas que lutam pela preservação da floresta e seus habitantes. Enquanto fico sob a sombra do meu pé de manga preferido, cujos galhos serviram de encosto para leitura dos livros que eu carregava feito tesouro, consigo não pensar no desgraçamento que esse país vive desde que começaram a colonizar esse pedação de terra há mais de 500 anos.
Ali, naquela sombra, lembro da caixa de música que Greta ganhou de sua mãe, que ganhou da mãe dela. É essa caixa, a canção que a caixa toca, que guia Greta em sua aventura. Quando mostra a caixa pra Elliot, seu novo melhor amigo, ela diz: “Eu costumava imaginar que ela (a caixa) era de um reino distante, um reino em que tudo poderia acontecer. Recheado de criaturas místicas e tesouros desconhecidos. E que a mágica contida nessa música mantinha o reino seguro dos perigos escondidos além dos limites da escuridão.” (em tradução livre)
I used to imagine it was from a far away realm, a realm that anything could happen. Filled with mystical creatures and stuff to untold treasures. And that the magic inside this tune kept the realm safe from the dangers beyond the borders hidden in the shaddows.
Ao rever Girl Asleep e depois caminhando pelo quintal da vó, fiquei pensando em como as imagens dos sonhos dialogam com a realidade: expandindo-a ou colocando alguns detalhes em visão microscópica. O sonho é de quem sonha. Quando ouço ou leio um relato onírico de alguém posso me identificar com alguns pontos ou admirar as imagens de forma passiva, mas jamais entender em profundidade o que aquele relato diz sobre quem me conta o sonho. Só o sonhador possui as chaves de entendimento daquilo que sonhou, uma pessoa especializada e versada nos estudos da psicologia, pode ser guia para que um indivíduo se aprofunde em suas imagens simbólicas e dali encontrar algum significado. Mas é bom lembrar que o sonho não usa uma linguagem linear objetiva, as imagens ali são simbólicas, é linguagem mítica, e são as experiências do sonhador que geram o alfabeto que compõe o idioma usado pelas estruturas que criam a narrativa onírica. Sim, existem sonhos “universais”, mas vamos deixar essa conversa para uma outra cartinha.
Acho importante deixar claro aqui que apesar do meu entusiasmo com a questão, da pós graduação (que não finalizei) em Psicologia Junguiana, da quantidade de literatura que já consumi sobre o assunto, do meu próprio processo de terapia, acompanhada por uma psicóloga que além de fazer parte da Fundação Joseph Campbell, dedica seus estudos à linguagem mítica e aos sonhos; eu não sou uma pessoa especializada no sonhar. Minhas colocações e percepções vêm principalmente da minha vivência e encanto sobre o assunto e devem ser encaradas assim: como palavras de uma amadora. Sem contar que minha proposta pra essas cartinhas é a de ter uma espécie de laboratório para experiências com a escrita sob uma perspectiva onírica, e não a de uma exposição técnica ou especializada sobre a ciência dos sonhos.
Dito isso, sinto que na infância somos uma espécie de mata inexplorada, e os primeiros caminhos abertos costumam servir de trilhas recorrentes: à medida que repetimos o caminho, a trilha continua acessível, mas se deixamos de passar por ali, a vegetação volta a crescer, encobrindo o lugar por onde um dia caminhamos. Às vezes passamos pelo mesmo lugar tantas vezes, que então passamos a construir algumas edificações em torno daquela trilha que agora virou estrada, e quando vê tem uma metrópole de si. Somos construídos.
Para tornar-se consciente é preciso percorrer essa construção com os olhos abertos e atentos, correndo o risco de confrontar criaturas sombrias, de um teto desabar sobre a cabeça, de encontrar rachaduras na fundação e até mesmo de ter que colocar tudo abaixo para construir uma nova morada. Há também a possibilidade de se deparar com jardins inexplorados e belíssimos, árvores carregadas de frutos, desenhos nas paredes que sua criança desenhou e que você nem lembrava, ou ainda melhor: encontrar as versões de si que nunca foram embora e fazer as pazes com elas, acolhê-las com amor e perdão. Os sonhos abrem uma janela para esse espaço interno, e quando ouvimos com atenção o que eles têm para nos dizer, podemos transitar pela paisagem de forma ativa e iniciar esse processo de re-construção e/ou conservação.
É em uma aventura onírica que Greta toma consciência do amadurecimento que está vivendo, as imagens que sua mente gera para guiá-la estão dentro dela, fazem parte de sua vivência, trajadas de uma roupagem simbólica, claro.
E então volto ao quintal, o primeiro refúgio de que tenho memória, onde me escondia quando queria silêncio e ficar acompanhada de mundos distantes e mágicos, principalmente a partir da leitura e da imaginação. Onde aconteceram grandes transformações sem ninguém por perto para presenciar. Por ser um espaço com tanto significado, quando esse quintal me encara em sonho, encaro de volta e me permito ser conduzida pelas sensações que essa imagem desperta em mim, prestando atenção à minha volta e me conectando com cada detalhe da jornada, mesmo sem saber para onde o caminho vai me levar.
E você? Têm sonhado com cantos significativos que habitam sua memória?
De volta pra casa - A Diletante
“Voltar para casa é fundir quem fomos com quem nos tornamos, é juntar os fragmentos do presente e do passado. É retornar da aventura e estar em paz. É ser de novo um.” A minha vontade é de recomendar aqui todos os textos da Ariela, pois maravilhosa, mas nesse, escorreu uma lagriminha de identificação enquanto lia no caminho de retorno à Brasília, voltando da casa da vó.
Pote de milk-shake - Matheus Assunção (Editora Patuá, 2022)
O livro de contos do Matheus me encantou demais! Para além das personagens emocionantes e das histórias que acontecem como uma janela para aqueles universos, me senti muito confortável na estrutura do texto e quis devorar tudo de uma vez, mas me permiti saborear esse milk-shake aos pouquinhos e foi uma experiência maravilhosa. Venho relendo os contos desde então e sinto que é um livro que vai me acompanhar ainda por muito tempo na minha jornada.
Sonhos Esquecidos - Vibes em análise #13 (sim, TREZE hehe)
O episódio traz uma espécie de panorama dos impactos e do poder dos sonhos e de como nossa sociedade não tem “tempo para sonhar”, além de trazer algumas ferramentas para quem quer explorar mais seu próprio universo onírico.
Musique de Nuit - Les Fragment de la Nuit
Tenho descoberto todo um universo de Dark Jazz e Repetitive Minimalism, músicas que de certa forma geram trilhas sonoras para filmes imaginários enquanto economizam na diversidade de instrumentos (na minha interpretação). E eu acho isso lindo. Sigo apaixonada por esse álbum.
É isso, desejo uma bela colheita de sonhos pra você, nos vemos no mês que vem :)