Canções que embalaram o processo dessa cartinha:
Aiure - Aiure (2018) no Spotify, no Youtube e no BandCamp
Posada - Isabel (2017) no Spotify e no Youtube
Bom, Ana me deixou tão à vontade nessa nova casa, que hoje quem fala sou eu: que não tenho nome, que tenho muitos nomes, que transbordo. Tem café e pão de queijo quentinho, se aconchegue aí e vem comigo pra essa história:
Gabriela abriu a porta e entrou. Caminhou desorientada pela escuridão, não bateu o dedão do pé em nenhuma quina e nem esbarrou em coisas, parecia estar atravessando o oceano primordial do nada e do tudo, uma imensidão. Depois de algum tempo naquele breu, um pontinho de luz surgiu longe e foi crescendo à medida que ela continuava a colocar um pé na sequência do outro. Viu ali, sentado em uma cadeira de madeira, com um sorriso acolhedor e com o círculo de luz em volta de si, um homem que aparentava ter uns 70 e poucos anos. Enquanto os olhos se acostumavam com a claridade, Gabriela notou que o senhor usava umas roupas sóbrias em tons de cinza: calça de linho, camisa branca de manga comprida, colete de lã e sapatos estilo mocassim, coisa fina. Ele parecia seguro, confortável e muito simpático. As palavras ficaram encasuladas em sua garganta enquanto a mente dela borbulhava “que porra de lugar é esse?” “quem é você?” “como foi que eu achei essa porta?” “o que diacho eu tô fazendo aqui?” “pelo amor de deeeeeus por quê eu não consigo falaaar?!?!?!”
— Se permita viver e vai encontrar as respostas, ele disse.
Aquela voz reverberou em cada célula de Gabriela e ao tentar articular uma resposta em meio àquelas sensações todas, acordou. Se percebeu em movimento, estava deitada e em movimento, como era possível? Quem são essas pessoas à sua volta? Que difícil abrir os olhos, as imagens em borrão, desiste de continuar tentando e as pálpebras se fecham.
Gabriela não lembrava do cômodo de oceano primordial, nem do senhorzinho simpático e muito menos das palavras dele quando de fato acordou, ainda meio grogue, mas acordou.
Gabriela tinha morrido. Gabriela nasceu outra vez. Apagou da memória a data exata de seu segundo nascimento, conta só com o registro de que tinha 15 anos quando aconteceu. Já fazem 16 anos que Gabriela insiste em colecionar memórias de sua trajetória, a vaga recordação do período que estava vivendo e da idade que tinha já são validações suficientes pra colocar aquele souvenir na caixinha de lembranças e se apegar à ele.
Persistiu por muito tempo a sensação de ser inadequada, de não pertencimento, de que não deveria ter recebido a vida extra, de que era difícil demais encontrar sentido no bolo de confusão que se apresentava diante dela. Então colecionava o que pareciam ser evidências de que deveria SIM estar ali, por mais que sua caixinha contivesse só uns poucos guardados.
Há 31 anos Gabriela nasceu pela primeira vez. Assim, saiu por um corte ensanguentado da barriga de sua mãe, nascer é um detalhe que vocês gostam de situar no momento do parto. Nascer é outra coisa. Você já nasceu muitas vezes durante sua existência, e morreu também. O que Gabriela não conseguia assimilar era a ideia de que vida e morte não são pólos opostos, mas uma coisa só, fundidas como tempo-espaço, e de que a linearidade da coisa toda é só uma das percepções possíveis. Ela não sabia que poderia mudar tudo a partir do olhar que lançava sobre o passado e o futuro, não enxergava que tudo acontecia ao mesmo tempo.
Nasceu quando mudou de cidade, há 8 anos. E também quando conheceu o grande amor que transformaria tudo, já faz cerca de 15 anos. E nasceu outra vez quando decidiu dizer aquele adeus em 2018, e de novo em 2022 de forma mais definitiva. Sim, é aquela ideia (meio clichê?!) de que toda decisão que você toma impõe a morte de vários caminhos que poderiam ser vividos. Talvez seja clichê por acontecer com tanta frequência. Desde o ônibus que entra de manhã indo pro trabalho a esses marcos temporais monolíticos que Gabriela talhava em pedra em sua memória.
Gabriela atravessou outro vórtice há 23 anos, que trancou algumas portas de sua percepção e que a travou em muitos aspectos da vida prática e afetiva. Houve outro menos agressivo há 18 anos, e outro há 11 anos, e outro ONTEM. Vê, meu ponto é: Gabriela morre todos os dias. Gabriela também nasce todos os dias. Apesar de continuar se ancorando em datas fixas no oceano instável que chama de tempo.
Tem essa bússola simbólica quase imperceptível pra ela, uma estrutura psíquica que segue criando colagens afetivas diariamente em um espaço onírico, desfragmentando as informações complexas e tentando organizar a bagunça de suas obsessões. Uma bússola guiada pela cartografia afetiva individual daquilo que gera bifurcações no mapa do território criado na caixinha de recordações. Essas coisas, aparentemente mundanas, essas expressões de arte e memória e registro, vazam pro mundo dos sonhos, pautam as imagens que Gabriela visualiza (dormindo ou acordada).
Arte é coisa linda de viver, em toda sua potência de reverberação individual e que atravessa a possibilidade de formação de um coletivo simbólico. No fim das contas, são essas manifestações que geram as conexões que Gabriela enxerga como validações de sua permanência em vida, pois as percebe como fagulhas de inteireza que a fazem sentir que de alguma forma está captando e entrando em contato com os átomos primordiais do Big Bang. Um estado de suspensão, de querer correr e saltitar e dançar na rua tal qual Frances-Ha ao som de Modern Love do Bowie, de sentir que conseguiu visualizar a imagem completa do quebra-cabeças olhando pra uma única peça. E a cada peça que encontra, Gabriela se sente um pouquinho mais pertencente, e de que existe a possibilidade de encontrar algum sentido.
Essa imposição de tempo linear que vocês criaram acaba minimizando a potência dessas transformações que seguem como fluxo de rio em direção ao oceano: sempre em movimento. Dá até pra gravar em disco rígido a fotografia de um instante da água que corre, mas independente do registro a água segue fluindo incontida. Você é o rio e também o barco que o navega, o peixe que nada abaixo da superfície e da mesma forma o marujo que conduz a embarcação. Tudo ao mesmo tempo, repetidamente em um ciclo auto renovável.
Ana, conto a história de Gabriela, mas nesse ponto você já entendeu.
O melhor amigo de sua mãe era nascido em 24 de abril e tinha uma noiva chamada Anna Flávia, com dois n’s, vale frisar. Seu nascimento estava previsto pra acontecer entre 4 e 6 de abril, mas Joaz (o melhor amigo da mãe) insistia que a menina nasceria no aniversário dele, tinha uma certeza quase profética disso. Joaz estava tão certo que decidiu fazer uma aposta: “Se ela nascer dia 24, chama Ana Flávia, se nascer antes ou depois, você chama de Gabriela mesmo ou de qualquer outro nome que decidir”. O mais impressionante foi a senhora sua mãe não só aceitar a aposta, como também cumprir seu desfecho: você nasceu em 24 de abril, e foi chamada de Ana Flávia. Incrível como em tantos momentos tratou da vida como uma aposta, mesmo antes de ter consciência dessa história.
Gabriela, Ana Flávia, Aninha, Dona Ana: os nomes dados que te chamaram à existência. Cecília, Lisa, Jimmy, Ana Pontes e todos os que permanecem não ditos: os nomes criados que te permitiram inventar outras possibilidades de ser.
Nesse grande fluxo de impermanência, trauma e êxtase, você aprendeu a chamar todas as potências que te habitam pra tomar um café, comer cuscuz e bater um papinho. Coloca na mesa a carta da Morte, da Temperança e do Mago, discorre sobre as obsessões recentes e tenta fazer acordos sobre a frequência dos surtos, afinal tem que botar alguma ordem nessa reunião de condomínio. Isso já é razão suficiente pra celebrar que há 31 anos você segue viva, mas que há 16 você segue invicta. Repito então as palavras que te disse naquele dia de imensidão:
— Se permita viver e vai encontrar as respostas.
O rascunho desse texto já estava escrito há alguns meses, mas de lá pra cá entrei em contato com alguns conteúdos que me tocaram demais e geraram algumas alterações importantes: sobre limites, tempo de fermentação, memória, tempo como narrativa e linguagem dos mitos. Recomendo fortemente que você siga esses links :D
Sinta-se à vontade pra expandir essas palavras com o diálogo. Pode responder esse e-mail ou comentar via Substack. Agradeço por ler até aqui! Nos encontramos de novo no mês que vem
Que bacana! Me sinto feliz por ter de alguma forma te dado incentivo pra colocar esse texto no mundo
amei, provocou várias reflexões importantes por aqui. gracias pela partilha. ❣️